Trabalho com a lã


Adormeci ontem, primeira noite aqui, ao som das rãs que habitam na ribeira. Acordei com o mesmo som, adicionado do canto dos pássaros, da calma e da luz do nascer do dia. Sinto a calma da Natureza a invadir-me o corpo. Sinto o meu corpo a explodir de alegria, de gratidão por esta experiência tão boa.

Em Maio passado, a convite da Andreia Marques, estive cinco dias no Alentejo a trabalhar a lã. E foram estas as primeiras palavras que escrevi acerca da experiência a trabalhar a lã na Herdade de Ribeira de Borba.

O trabalho focou-se essencialmente em lavar lã. A Andreia ainda tinha velos de lã de 2017 ! Lavámos esses velos e também os da tosquia deste ano.

 

CICLO DA LÃ

Tosquia

Nos dias em que estivemos no Alentejo, “apanhámos” o dia da tosquia. Apesar de ter experiência a trabalhar a lã, nunca tinha visto nenhuma tosquia ao vivo. E para privilégio meu, assisti à tosquia feita pelo encantador de ovelhas, o Martin. O Martin nasceu na nova Zelândia e é tosquiador de ovelhas desde muito miúdo. Ele trouxe o seu precioso conhecimento para Portugal e não é de estranhar o porquê de todos gostarem do seu trabalho. Ele tosquia as ovelhas como ninguém. Fala com elas, tranquiliza-as. Se observarem no vídeo que fiz, conseguem perceber que as ovelhas estão quietas, tranquilas e há um cuidado extremo em nunca as magoar. E o melhor de tudo é que o seu método de tosquiar permite retirar o velo por inteiro, o que é perfeito para aproveitamento da lã. 

Imediatamente a seguir à tosquia, a Susana (esposa do Martin) é quem tem a responsabilidade de tratar do velo. Neste processo, são retiradas do velo a parte de lã que não é de boa qualidade e assim fica pronto para guardar sem se degradar. 

Durante este processo também nos apercebemos de que a lã borrega é de longe mais macia do que a lã de uma ovelha adulta e que essa condição também é visível pelo tom da lã. Sendo ovelhas da mesma raça – merino alentejano – foi mesmo interessante entender que a idade de cada animal, o pasto, a condição de vida (se p. ex. está a amamentar) vai ter impacto na qualidade da fibra. Interessante, não é?

Uma outra coisa que aprendemos com a Susana e o Martin é que a lã portuguesa, por ser tão diversificada em termos de raças autóctenes, é também ela de muito boa qualidade. Confesso que fiquei super feliz com esta informação 😊.



Lavagem e secagem

Lavámos lã ao longo de três dias seguidos. No total, 32 velos (i. e. 32 memés 😊) e destes, 4 eram de lã preta. Que maravilha!  

Foram horas intensas a lavar a lã. Já tinha tido algumas pequenas experiências a lavar a lã mas no máximo, dois ou três velos. Nunca tantos como agora! O que foi uma experiência diferente, principalmente em termos logísticos e em esforço físico.

O primeiro passo foi desenrolar cada velo e espalhá-lo no chão. Felizmente, apenas lã de dois sacos tinha traça (da lã mais antiga que a Andreia levou). A traça é sempre aquela questão de que queremos fugir a sete pés.

Os velos foram mergulhados em água quente e ficaram de molho pelo menos meia hora. Houve alguns que acabaram por ficar algumas horas, enquanto tratávamos de outros velos. Inicialmente fizemos tudo isto junto da ribeira, mas facilmente nos apercebemos que a logística entre andar a carregar baldes de água quente para trás e pra frente ocupava muito tempo e requeria muito mais esforço físico. Conseguimos agilizar o processo e torná-lo mais simples e eficaz. É aqui que a maior parte da sujidade sai da lã.

A seguir dividimos a lã em sacas de rede (de batatas!) e mergulhámo-la em água fria – a água da ribeira. Esta parte foi sem dúvida a minha preferida! Porque também nós mergulhámos os pés na água. E que bem que soube! Ajudou muito a suportar o calor do Alentejo 😊. Tivemos o cuidado para não agitar muito as sacas. Já sabemos que com o movimento brusco, a lã pode feltrar.


Um outro acrescento à nossa logística foi colocar a lã a secar. No primeiro, apenas tínhamos 12 velos lavados, colocámos a lã num chão de pedra do alpendre que há na herdade. A lã cubriu todo esse espaço.

Já nos dias seguintes, com mais lã lavada, tivemos que estender a lã na relva. Também sei que há quem estenda a lã num estendal, mas mesmo que tivéssemos um para nós, teriam de ser muitos! E a lã demora algum tempo a secar.

Durante o dia ficava a secar ao sol. Ao fim do dia, guardávamos toda a lã em sacos, para a proteger dos gatos e da humidade da noite. No dia seguinte, de manhã, estendia-se novamente a lã. E foi assim ao longo destes dias.


Depois deste processo todo e também em trocas de mensagens com amigas que também trabalham a lã, apercebemo-nos de que nem toda a gente lava a lã da mesma forma. É verdade que fizemos de acordo com a minha experiência prévia, mas que se aplicava a dois ou três velos apenas. Quando temos uma quantidade de mais de 30 velos, temos maior capacidade para perceber qual será o melhor método de lavagem. E há sempre uma outra pessoa que faz de forma ligeiramente diferente. E isso deixou-nos a pensar e também a querer experimentar de forma diferente no futuro.

Cardar e fiar

Nos últimos dois dias, enquanto tínhamos a lã a secar, aproveitámos para cardar lã. Também fiei, mas mais para demonstração. Não fiei muita.

Mas só para partilhar que depois de a lã lavada, podemos então cardar e depois fiar a lã.

Cardar a lã é essencial porque vai preparar as fibras da lã para a próxima fase, a fiação. Depois de a lã fiada, segue-se o tingimento. E assim chegamos ao fio para tecer, ou no meu caso, tricotar 😉




Estes cinco dias no Alentejo foram tão bonitos. Foram dias intensos de trabalho, as manhãs, as tardes, trabalhar quase até ao anoitecer. Chegava ao final do dia com o corpo dorido, mas com a cabeça tão leve e tão descansada.

O espaço da Herdade é maravilhoso. Tem as ovelhas, tem cavalos e tem burros. Existe uma imensidão de campo de flores silvestres, de plantas aromáticas, como a sálvia, o alecrim, alfazema, hortelã. Tem uma ribeira que nos refrescou os pés enquanto lavámos a lã.

Estar neste lugar é quase terapia. É ouvir o som da Natureza o dia todo. A invadir-me todos os sentidos. É viver intensamente com calma. Deitava-me com cansaço no corpo, mas de alma lavada. Acordava antes das 7h por vezes, mas com a frescura do amanhecer. Adormecia ao som das rãs. Acordava com o canto dos pássaros. O mundo lá fora, uma sinfonia do canto dos pássaros, dos chocalhos das vacas da herdade vizinha, dos memés das ovelhas, do som da água da ribeira e das rãs, da luz do amanhecer, da beleza e da diversidade de plantas à minha volta.

Obrigada a ti, Andreia. E Obrigada Telma pelas fotos maravilhosas.